"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Contos Incompletos: O monstro


(Texto antigo escrito por mim, incompleto)


Aquele quarto só não estava totalmente escuro pelo pequeno feixe de luz que vinha pelo vão de uma janela quase fechada. Só por isso. Mas para a menina deitada na cama, a luz não significava nada, não a acalmava. Ela preferia que não existisse luz nenhuma, preferiria as trevas envolvendo-a, seria mais fácil desistir de tudo se não visse nada a sua volta, mas aquele pequeno feixe de luz continuava ali, enfrentado corajosamente toda aquela escuridão. Irritantemente corajosa essa luz.
Dora respirou fundo tentando colocar sua cabeça para funcionar. Ela gostava daquele garoto, gostava quando ele a abraçava, fazia ela se sentir como um criança, pequena e protegida. Se sentia confortável em seus braços, como uma criança, não como uma mulher, só uma criança. Ela gostava dele, mas não o amava, talvez o amasse daquela forma superficial e distante, mas não de verdade. Não o amava por ele ser quem era e sim pela sensação que ele lhe dava, a sensação de ser alguém, de ser querida e amada. Quando ela estava com ele, todos seus medos pareciam desaparecer, ela parecia ser outra pessoa, feliz e livre, maravilhosamente livre, mas no fundo ela sabia (é claro que ela sabia), que tudo aquilo era uma mentira, que aquilo não era amor e que não duraria muito tempo. Talvez ele só estivesse com ela para que aquele momento acontecesse. Dora sabia que mais cedo ou mais tarde ele a levaria para a cama, estava óbvio, desde a primeira vez que encostara sua boca na dele, em uma noite que ela decididamente não estava sendo ela mesma. Ou talvez só aquela noite ela tenha sido ela mesma, talvez o resto de sua vida seja uma farsa. De qualquer jeito, não importa.
A garota se sentia ridícula com ele daquele jeito, por cima dela. Se sentia uma criança idiota, com medo e frio, tentando, em vão, se fechar em sua concha. Sim, uma concha, ela se sentia como uma concha, e aquele garoto, tão perto e quente, estava invadindo seu espaço. Ela se esquivava e ele avançava, como em um teatrinho inútil. Mas ela não estava atuando. Dora sabia que não conseguiria fugir. A cada segundo que ela se negava, mais ele ficava decepcionado e irritado, ela não suportaria decepcioná-lo. Como poderia? Era o mínimo que ela poderia fazer por ele, depois de tudo que ele havia feito, depois de tê-la mantido protegida e quente todo aquele tempo. Ela sabia que não poderia fugir, mas mesmo assim, por algum motivo, procurava ganhar tempo, enquanto analisava sua situação rapidamente. Ele era maior que ela, muito maior e mais forte. Ela tinha medo, ele havia dito que não a forçaria, mas o medo ainda estava lá. Ela estava na casa dele, no quarto dele, não sabia voltar para a casa sozinha, ele poderia fazer o que quiser com ela, facilmente, e ninguém nunca ficaria sabendo. Tentou afastar esses pensamentos de sua cabeça. Ele não faria isso, não faria. Dora sabia que provavelmente estava delirando, coisas assim só acontecem em filmes. No fundo, talvez ela só estivesse procurando desculpas para não poder fugir, ela não sabia, talvez ela quisesse também, no fundo. Como saber? Se ela realmente não quisesse, porque estava gostando daquela mão acariciando-a e aquela boca que a beijava? Talvez seu corpo, seu corpo sujo e vil, quisesse, mas sua cabeça não. Seu coração decididamente gritava, disso ela sabia.
Aos poucos ela foi cedendo, se rendendo aos pouquinhos, calando o grito preso em seu peito e desligando sua cabeça de qualquer pensamento. Logo tudo acabaria, estava tudo bem. Ela ficaria bem.
André, André era o nome dele, se livrou do resto da roupa que ainda vestia e sorriu. Dora corou e baixou os olhos nervosa, por algum motivo se sentiu mais nervosa de ver ele nu do que ela mesma estar sento vista, mesmo sendo muito tímida. Ele se inclinou sobre ela e beijou seu pescoço, fazendo com que ela estremecesse.

- Ei, está tudo bem. - sussurrou ele em seu ouvido. - Não vou te machucar.

Mas ela não parou de tremer. Sentiu seu coração disparar enquanto as mãos dele desciam suavemente pelo seu corpo. Simplesmente não conseguia se acalmar. Aquilo era tão errado. Sentiu seus dedos acariciando-a. Ela estava com medo, muito medo. Sentiu o membro duro dele entre suas pernas e se segurou para não gritar, se afastou por impulso e fechou as pernas com força. Teve vontade de chorar, de enterrar a cabeça em seus joelhos e ficar ali chorando, mas antes que sua respiração tivesse voltado ao normal e o efeito do susto diminuído, ela olhou para ele e então engoliu o choro e voltou para seus braços, tão rápido quanto tinha se afastado. O que ela viu foi decepção em seu rosto, o peso de uma decepção enorme e ela teve medo, um medo maior ainda do que o que ela estava sentindo antes, teve medo de ser abandonada. Ela suportaria a dor daquilo, mas duvidava que suportaria novamente a dor do abandono, não, ela preferia aquilo.
Por isso, procurou por sua boca, como que se desculpando e deixou que ele a tocasse. Deixou que ele a penetrasse devagar, junto com uma dor estranha, meio puxada e por dentro. Mas aquela dor não era nada. A dor física sempre é minúscula perto da dor emocional, a dor física é fácil de lidar, é simples e passageira, a dor que vem de dentro não. Mas naquele momento ela não estava sentindo seu coração doer como antes, não estava sentindo porcaria nenhuma além do prazer do corpo. Se sentia desligada, ausente, estranha... Sentia aquele "não-sentir" nojento que tanto odiava e amava. O "não-sentir" estranho, aquela sensação que a fazia imaginar que poderia se matar facilmente, sem derrubar nem uma lágrima, ou ser morta sem se importar, se sentindo feliz por isso. Essa sensação estranha de ter outra pessoa dentro de si, uma pessoa má e sem sentimentos, que mataria a si mesmo sem pensar duas vezes. Mas essa pessoa má dentro de si não a assustava tanto assim, de certo modo fazia com que ela se sentisse forte. Se sentir forte por ter a certeza dentro de si de que tem o poder de acabar com uma vida? A sua própria vida? Não. Fazia ela se sentir forte por imaginar que, quando estava assim, tomava as rédeas da vida em suas mãos e decidia seu futuro. Era o único momento que se sentia forte o suficiente para escolher seu futuro. Viver ou não viver.
André gemeu e entrou com mais força, em um ritmo crescente, até que ela sentiu um líquido sendo lançado para dentro dela e ele relaxando ofegante. O garoto se deixou cair pesadamente ao seu lado, ainda respirando com dificuldade. Dora olhou para ele sorrindo, estava feliz por não tê-lo decepcionado, se aninhou em seu peito, sentindo sua respiração ir diminuindo até estar totalmente normal. Gostava de sentir seu corpo no dele, gostava quando ele a envolvia daquele jeito, se sentia protegida. Como uma criança. Só não gostava muito da outra parte, mas tudo bem. Dora piscou os olhos com força, de repente se sentia terrivelmente cansada. Talvez devesse dormir um pouco, ou para sempre, tanto faz.
 
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A garota acordou de repente com o sacolejar do metrô.

- Você está bem? - André olhou para ela preocupado, passando a mão pelo seu rosto. - Cansou tanto assim? - completou ele divertido.

Dora corou, fazendo que sim com o cabeça, depois suspirou e pousou a cabeça no ombro do companheiro novamente.

- Eu não almocei hoje... Deve ser por isso. - Ela bocejou. - Onde estamos?

- Daqui a pouquinho a gente vai estar na sua estação. Vem.

Eles levantaram. A menina passou a mão pelos cabelos, se sentia terrivelmente suja. Sentiu André a abraçando por trás. Sorriu. Gostava de ficar abraçada, gostava daquele jeito protetor dele, meio ciumento e possessivo, de certo modo eles eram parecidos. Os dois eram extremamente carentes de atenção e carinho, talvez por isso, quando estavam juntos, não desgrudavam. Ela se virou e se pendurou em seu pescoço, acariciando sua nuca e beijando-o devagar.

- Eu te amo. - sussurrou o garoto. - Mas a gente precisa descer agora.

Os dois desceram entre as multidão e caminharam até a catraca, mas antes que Dora pudesse pensar em se despedir e ir embora, André a puxou para um canto com mais privacidade e a colocou gentilmente entre a parede, beijando-a apertado. A garota sentiu o corpo dele se excitar enquanto a mão dele descia por suas costas.

- Aqui não! - disse ela baixinho, nervosa, sentindo sua respiração desregular. - Vai com calma. A gente está no meio do metrô!

- E daí? Eu nem sei quando vou poder te ver de novo. - Respondeu ele procurando por sua boca, acariciando sua pele por baixo da roupa.

Dora fechou os olhos, se consolando no fato de que ele não faria nada além de um amasso. O único problema era que o tempo passava. Sentiu seu coração disparar, ela precisava estar em casa antes de anoitecer. Não queria nem ver a reação da mãe quando chegasse em casa. Ela simplesmente tinha fugido da escola e da aula particular para estar todo aquele tempo com ele, sem dar explicação nenhuma para ninguém. Ela decididamente estava morta.

- Ahm... Com licença. Desculpem, mas vocês não podem fazer isso aqui...

Os dois se sobressaltaram e olharam para o guarda que os abordava.

- Nós já estávamos indo embora. - disse André impaciente.

- O senhor não está entendendo. Vocês não podem fazer isso aqui.

- Tá, tudo bem, estou longe dela, está vendo? - respondeu ele se afastando dela. - Agora nós podemos pelo menos conversar?

O guarda se afastou mas permaneceu observando-os.

- Cara chato... A gente não estava fazendo nada.- murmurou ainda ele.

- Eu avisei... - disse Dora cruzando os braços e fazendo uma careta.

Ele revirou os olhos, depois relaxou e sorriu.

-Toma. - disse ele tirando uma pequena embalagem escura do bolso. - Para a gente usar da próxima vez. Guarde direitinho, hein?

Dora arregalou os olhos assustada para a camisinha em sua mão. André riu.

- Você também esqueceu completamente, né? Minha idéia era colocar depois, já que era sua primeira vez, sabe? Dizem que com camisinha dói mais. Só que... eu acabei esquecendo e fui até o final sem nada. - ele levantou gentilmente o queixo dela para olhá-la nos olhos. - Me desculpe por isso linda. Mas não se preocupe, não vai acontecer nada, tudo bem? Foi só uma vez.

Ela concordou e guardou a embalagem no bolso, tentando manter a calma. O garoto a abraçou rapidamente e a conduziu para a catraca.

- Nós vamos nos ver logo, não vamos Dora? Arranja um tempinho de novo para mim. - ele a beijou. - Da próxima vez nós vamos nos divertir mais ainda, prometo. Posso te levar para um monte de lugares legais também. Você vai ver.

- Até mais. - disse ela sorrindo triste e já passando para o outro lado.

- Eu te ligo, tudo bem?

Dora ainda acenou tranqüila uma última vez antes de se misturar a multidão, mas assim que percebeu que estava sozinha e indo para casa, a tranqüilidade se foi e ela começou a sentir. A primeira coisa que veio foi o turbilhão de pensamentos confusos que invadiram sua mente, depois culpa, raiva e desespero, principalmente desespero. Um desespero surdo que começou pequeno e tímido dentro de si e foi aumentando cada vez mais a medida que se aproximava de casa. Se lembrou da mãe, da avó... O que elas pensariam se descobrissem que sua filha e neta tinha acabado de cometer um dos piores pecados que existia? O que fariam? Ela estremeceu. O que Deus faria com ela? Ela sentiu o peso desse pensamento sobre sua cabeça, sentiu a verdade cair como uma pedra em seu peito. Ela seria castigada, Deus a castigaria, ela sabia. Dora aprendera desde pequena o quanto as pessoas que erravam pagavam, desde pequena aquela sementinha de medo de tudo o que fosse contra sua religião estava sendo cultivada e agora ela sentia. Ela sentia as raízes disso apertando seu coração, sufocando-a. Como ela pode fazer isso? Como? Como pode ser tão burra? Ela respirou fundo e fechou os olhos por um instante. Precisava manter a calma até chegar em casa. Quando estivesse trancada em seu quarto ela poderia fazer o que quisesse com si mesma. Prendeu toda a sua aflição dentro de si e passou a se concentrar em continuar andando e andando. Faltava só mais um pouquinho, ela conseguiria.
 
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Dora respirou fundo e abriu a porta do apartamento timidamente. Lá estavam seus pais, como dois guardas de prisão, grandes e maus, esperando a prisioneira chegar. A garota sentiu que diminuía a cada passo que dava para dentro de casa, diminuía até virar uma criança e continuava diminuindo até se sentir a menor criatura do mundo, a mais insignificante e idiota. Broncas e gritos vieram. A garota gritou também, ela precisava atuar bem nessas horas, se ela respondesse alto o bastante eles acreditariam que estavam exagerando na bronca e que nada de ruim havia acontecido, eles acreditariam, apesar da decepção de sua filhinha ter sido tão irresponsável, eles acreditariam, ficariam mais calmos e logo a família iria se dissipar, cada um para seu canto. Como sempre. Sempre como um teatrinho idiota. Mas o fato é que eles não estavam fazendo tempestade em um copo d'água, ela sabia disso.
De um jeito ou de outro ela foi para seu quarto, trancando a porta atrás de si e por um instante se sentiu aliviada por ter se livrado dos pais. Mas só por um instante, porque logo em seguida o peso de tudo aquilo caiu novamente sobre si, sentiu as pernas começarem a tremer, correu para a janela antes que não tivesse mais forças para levantar e trancou-a, voltou até a porta e apagou a luz, por fim se sentou na cama. E as lágrimas vieram, dolorosamente, enquanto ela sentia que caia em seu abismo, cada vez mais, mais fundo e pior do que todas as outras vezes, apertou a cabeça entre as mãos enquanto tremia entre os soluços. Como ela pode fazer isso? Justo ela. Justo ela. O que seus pais fariam se descobrissem? Eles a odiariam, ela sabia muito bem, eles teriam vergonha da filha, teriam nojo, não teriam? Ela mesma tinha nojo de si mesma. Respirar doía, o bombear do sangue pelo seu coração também. Estar viva doía a ponto dela imaginar se conseguiria continuar por muito mais tempo. Cravou as próprias unhas em seus braços, com força. Será que conseguiria fazer sangrar? Será que... Dora arregalou os olhos de repente e, sentindo um pensamento invadir sua mente. Sorriu.
E no momento que aquele pensamento, só aquele pensamento, tomou conta de sua mente, ela não sentiu mais nada. Dora simplesmente parou de chorar e acendeu a luz do quarto. Olhou indiferente para os braços marcados pelos arranhões. Era novamente aquele "não-sentir" estranho. Olhou para a escrivaninha, tinha um estilete lá. Porque será que ela deixava o estilete tão exposto daquele jeito? A menina o pegou tranqüila, levantando com o dedo a lâmina. Ignorando o fato que talvez ele já estivesse sem corte, ela pressionou a ponta contra a pele e abriu um pequeno corte. E no momento que viu que realmente tinha se cortado, o que ela sentiu foi muito melhor do que ela poderia ter imaginado. Teve vontade de rir. O que era aquilo? Droga? Se sentia... Viva. Tão viva que poderia sumir ou sair correndo e gritando pelo mundo, tão viva como a muito tempo não se sentia. De repente ela não pensava mais em problemas, não pensava em mais nada, a única coisa que ocupava todo o seu ser era: Se cortar. E Dora abraçou aquilo, abraçou aquilo como nunca havia abraçado nada, abraçou aquilo como sendo seu modo de fugir, seu modo de se sentir forte, abraçou como que sendo a solução.
 
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Lá fora os passarinhos cantavam, a menina não compreendeu a calma aparente do mundo do outro lado, teve raiva dos pássaros. Por que não iam embora e a deixavam em paz? Esfregou os olhos sonolenta, havia dormido quase a tarde inteira, por algum motivo vinha se sentindo cada vez mais cansada. Bocejou, sentindo a barriga roncar, e juntou coragem para levantar. Talvez devesse comer alguma coisa, havia vomitado todo o almoço. Sentiu a cabeça rodar. Não, ela não queria comer, tinha medo de vomitar de novo, odiava vomitar. De repente notou o celular vibrando violentamente em seu criado mudo, o pegou confusa, olhando para o visor. Chamada desconhecida. Desligou. Aquela era a sétima chamava, do mesmo número, seu celular avisava, impaciente. Dora atirou o celular na cama irritada. Era André. Já fazia um mês que não se viam, e ele continuava insistindo. A garota tinha medo de reencontrá-lo. Gostava dele, quando estava com ele, mas sozinha ali em seu quarto, tudo aquilo parecia muito distante e incompreensivo. Por que ela ficava com ele? Não fazia sentido. De onde ele veio? Como ela pode deixar que ele entrasse assim tão facilmente em sua vida? Xingou baixinho vendo o celular recomeçar a vibrar. Talvez devesse atender e acabar com tudo logo de uma vez. Talvez deve usar o "Nunca te amei" fatídico que ela tanto odiava, com toda aquele falsidade e cheiro de verdade no ar. Ela riu. Se ela terminasse iria parecer que ela é que só queria ficar com ele para ir para cama. Que nem uma puta. Dane-se. Dora queria mais é que ele morresse logo e sumisse de sua vida. Assim longe dele, ela o odiava, o odiava de todo o seu ser.
Pegou o celular decidida, mas daquela vez não era o namorado, era só um amigo. Ficou olhando preocupada para a foto no visor, até que o celular parou de vibrar, para recomeçar logo em seguida. Felipe. Tentou fazer seu cérebro funcionar. O que ela falaria para ele? Como se explica uma coisa dessas? Ele sempre a ajudava, é verdade, mas como resolveria aquilo? Será que ele conseguiria juntar os pedaços já tão remendados de seu coração de novo? Ela duvidava. Sussurrou um "me desculpe" timidamente e desligou o celular. Por um instante teve raiva dele também. Por que ele ainda se preocupava? Por que ele ligava? Por que ela sentia que precisava tanto dele? Bateu impaciente na própria cabeça ao sentir as lágrimas escorrendo pelo seu rosto. A única coisa que ela sabia fazer era chorar e chorar, que nem uma idiota. Ignorou seu coração batendo dolorosamente em seu peito, ignorou o fato dele estar gritando pelo amigo. Ignorou o fato de que mais cedo ou mais tarde iria correr para os braços dele, tentando desesperadamente colocar tudo o que a queimava por dentro para fora.
Dora se arrastou para a cozinha, sentindo a sonolência voltar. Talvez devesse comer pelo menos uma torrada. Mas antes que ela pudesse ter chegado perto da dispensa, a menina sentiu o estomago revirar violentamente. Correu para o banheiro e vomitou, se inclinando para a privada, ofegante, sentindo um gosto amargo na boca. Recomeçou a chorar. Se sentia tão fraca, tão fraca e perdida. O que estava acontecendo com ela? O que estava acontecendo? Será que estava doente? Quando foi... Dora lembrou da pequena embalagem preta no bolso de sua calça. Quando tinha sido a última vez que havia menstruado? Sentiu o coração disparar. Respirou fundo, tentando manter a calma. Um pouco mais de um mês talvez? Um mês e meio? Era muito cedo ainda. Talvez só estivesse um pouquinho atrasada, seu ciclo variava bastante. Sacudiu a cabeça tentando afastar aquela dúvida que se enraizava em sua mente. Havia sido só uma vez, uma vezinha só! Ninguém engravida assim de primeira.
Ninguém engravida assim. A garota se forçou a acreditar nisso e esperou, dia após dia ela desejou, de todo o coração, que ficasse menstruada. Mas os dias passaram e se transformaram em semanas. Dora sentia, a cada dia que passava frustrado, o desespero subindo pelos seus pés e pernas até atingir todo seu corpo e paralisá-la. Talvez esse fosse o castigo que a vida lhe

reservara por ter errado. Ela pensava com amargura. Ela merecia.

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A menina passou a mão direita de leve na barriga, tentando imaginar seu monstrinho crescendo lá dentro. Quando será que a barriga começaria a aparecer? Dora sonhava em ter um filho, ela queria sim... Mas não daquele jeito, não quando ela ainda era tão nova e enquanto ela ainda não era casada. Socou de leve sua barriga com raiva, sem saber ao certo se a raiva era dela mesma ou do bebê. Ele poderia morrer, enquanto ainda é pequenininho, então ninguém nunca notaria. Dora sentiu nojo desse pensamento. Ele era só um bebezinho, acariciou a própria barriga. Ele não tinha culpa. Se alguém tinha que morrer era ela mesma. Ela fazia tudo errado, nunca acertava. Nunca. Ela havia acabado de estragar a própria vida, a vida do filho, ainda minúsculo dentro de si, além dela saber que causaria tantos problemas para as pessoas a sua volta que ela não queria nem imaginar. A garota estremeceu, odiava ser um problema. Desejou que o pequeno dentro de si se alimentasse de suas vísceras, desejou morrer, mas sem matá-lo.


- Ei monstrinho... Você escolheu a mãe errada... - sussurrou ela.

Será que ele seria parecido com ela? Ou com o pai? Ela não sabia o que era pior. Dora abraçou os joelhos tremendo, sentindo de repente uma pena enorme invadindo-a. Pobre monstrinho. Ele nunca vai ter uma família, nunca vai se sentir alguém, nunca vai entender o mundo e se encaixar nele. Ele iria sofrer, tanto quanto ela sofria. Dora sabia que não conseguiria evitar. Como poderia? Se ele nascesse... Por mais que ela o amasse e protegesse, algum dia ele ficaria sozinho, algum dia ele teria que ir para a escola ou ficar com seus amigos, então coisas ruins aconteceriam e ela não estaria lá. Ela não estaria lá para defendê-lo do mundo. Seu pequeno cresceria... Exatamente como ela. Seu bebê não seria feliz, seria só mais um prisioneiro de si mesmo. Então, de que adianta nascer? Como Deus pode permitir que um inocente desses fosse parar na barriga dela? Deus deveria saber que estava condenando-o.
Dora se levantou incerta e pegou uma pequena faca que havia roubado da cozinha, levantou as mangas da camiseta e rasgou a pele do braço esquerdo, sentindo o sangue escorrer e acalmá-la. Talvez devesse simplesmente se matar, seu bebê morreria também... mas ele era tão pequenininho ainda, Deus não o mandaria para o inferno junto com ela, ele não poderia fazer isso. A garota olhou para a porta do quarto para se certificar de que continuava trancada. Seus pais talvez ainda demorassem umas duas horas para chegar, seu irmão não estava em casa, nem sua empregada. Dora sorriu de repente, com um plano já formado em mente, como se ela esperasse por esse momento a muito tempo. Olhou para a faca...

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