"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Esquizofrenia



Muitas pessoas eram esquizofrênicas na Casa dos Artistas. E por algum motivo, sempre que eu estava em uma das minhas crises lá dentro, os enfermeiros me perguntavam se eu estava ouvindo vozes. E mesmo repetindo dia após dia que eu não havia começado a ouvir vozes, eu sai de lá com o diagnóstico de Esquizofrênica e Borderline. Não sei direito o que isso pode significar, pode até mesmo não significar nada, mas é um pouco assustador. Agora, todos os dias quando vou dormir, as imagens das coisas que vi na clínica passam por minha mente e eu me pergunto se no dia seguinte eu vou ouvir alguma coisa que não existe, essa voz que levava tanta gente ali dentro a loucura, que obrigava os enfermeiros a amarrarem os pacientes em suas camas enquanto eles gritavam e se debatiam.

Eu também tive que ser contida um dia, mas eu não precisava de uma voz na minha cabeça para me enlouquecer ou me obrigar a me machucar. Meu monstro fazia isso muito bem, ele assumia o controle. Meus delírios não eram auditivos, eles são mais sensoriais e visuais. Não acho realmente que eu possa julgar um sintoma como sendo pior do que outro, mas na minha cabeça, ouvir vozes ficou como o último sintoma, um dos mais graves, um sinal de que você está perto de chegar em algo parecido com um "fim", onde os transtornos mentais atingiriam seu grau de gravidade máximo. Eu sei que cientificamente falando, isso não é verdade, mas como lá na clínica "ouvir vozes" eram uma das coisas que os enfermeiros mais se preocupavam, isso ficou organizado na minha cabeça dessa forma.

É por isso que todo o dia, agora, eu vou dormir me perguntando se eu vou acordar no dia seguinte ouvindo vozes. Me pergunto se sou mesmo esquizofrênica, se esse diagnóstico está certo, porque se estiver, eu posso esperar uma crise muito pior, porque ela com certeza virá, mas se o diagnóstico não for esse, eu posso descansar tranquila, porque, aí sim, minhas chances de continuar bem são grandes. Eu não deveria me importar tanto com isso, deveria deixar a vida correr do jeito que for e o que for será, mas não consigo evitar. Me sinto meio paranóica, eu continuo com vários pequenos sintomas, como se os remédios ainda não tivessem conseguido dar conta de todo o transtorno mas eu não sei se devo falar sobre eles, se devo me preocupar com eles, se com o tempo eles vão sumir... Não sei. Fico só especulando, me perguntando se vou continuar bem, se as coisas vão dar certo e o que há de errado comigo. Como será minha vida? Onde estarei quando tiver a idade da maioria das pessoas lá da clínica? Sendo internada pela segunda vez? Quarta vez? Oitava vez? Espero que não. Todos na clínica me diziam que eu era nova de mais... E já fazia dois anos que meu médico e minha psicóloga adiavam a data em que eu teria que ser internada. Se aos 17 eu já precisava de uma internação psiquiátrica, o que devo esperar quando tiver 30 ou 40? Eu não sei. Espero nunca começar a ouvir vozes, nunca mais precisar voltar a Casa dos Artistas ou qualquer outra clínica. Eu só quero que as coisas fiquem bem o suficiente para eu conseguir lidar com elas sozinha e não presa em um outro universo altamente controlado.

domingo, 26 de agosto de 2012

Recomeço



É tempo de começar de novo. De renovar as esperanças e retomar as forças. Ainda me sinto muito perdida e lerda. Na casa dos artistas o tempo parecia não passar, cada dia era uma eternidade de absolutamente nada. Aqui fora o tempo voa, há coisas de mais para se fazer em tempo de menos. Aqui tudo é em excesso, informação, barulho, imagens, sensações... No primeiro dia, quando voltei, quase enlouqueci ao ligar o computador e o celular. Fui bombardeada por tantas mensagens e bipes que pensei que nunca ia conseguir ver tudo o que deveria ter visto em um mês offline. Agora aos poucos estou voltando a me acostumar com essa loucura (ironia?) que é o mundo dos normais. Logo a vida que eu conheci na clínica vai se tornar distante e irreal, como sempre deveria ter sido. Não podemos nos acostumar muito a aquele universo controlado, corremos o risco de nunca mais conseguir voltar. Alguns realmente não conseguem voltar. Eu entendo essas pessoas, os viciados em internação, do mesmo jeito que entendo os internos desesperados pela liberdade. Há essas duas situações, por um lado queremos permanecer internados pois ali é um mundo pequeno e controlado, muito diferente do mundo real, enorme e assustador, ali as pessoas nos aceitam como nós somos, ali ninguém te julga pela sua "loucura", somos todos loucos, somos todos iguais, é fácil se sentir em casa, se sentir acolhido e compreendido, por outro lado, é uma prisão, parece que estão te punindo, como se você fosse um criminoso perigoso, te tirando uma quantidade enorme de direitos. O clima também é quase sempre deprimente, não é exatamente um lugar legal de se ficar, são problemas de mais reunidos em um lugar muito pequeno.

É, eu entendo os dois lados. Sofri muito lá dentro, mas também sofro muito aqui fora. De um jeito ou de outro, eu espero nunca mais cair tão fundo ao ponto de precisar de novo de uma nova internação. Eu espero que eles tenham acertado no diagnóstico dessa vez, nas medicações e em suas dosagens, para que nunca mais seja preciso aumentar nada. Espero também que meu transtorno não se desenvolva mais e que eu piore, ou que os medicamentos parem de fazer efeito com o tempo. Eu espero, enfim, que essa internação tenha sido um ponto final na minha vida, o momento em que eu deixo para trás todo o ciclo de melhoras e pioras em que eu estava presa e passe a conseguir a tão desejada estabilidade. Eu quero ficar bem e ter uma vida normal. Nem que para isso eu tenha que ficar um semestre em tratamento "intensivo". Antes da internação, eu não estava acreditando que um dia poderia ser feliz e ter uma vida normal.... Lá dentro eu vi que havia pessoas piores do que eu e que mesmo assim conseguiam ter uma vida consideravelmente "normal". Enfim, eu pude ver que havia chances para mim, que eu não era um caso perdido e que eu não estava sozinha. Estou feliz, mesmo que me sentindo muito perdida ainda. Estou esperançosa, creio que terei um período bom a frente.

Lembro de um dia em que entrei em crise dentro da casa dos artistas, em que eu chorava e perguntava para a enfermeira se eles iam conseguir consertar minha cabeça. Eu precisava saber se eles iam consertar minha cabeça, eu precisava. Ela disse que sim, que iam sim, enquanto me abraçava e tentava me consolar. Fiquei feliz de ouvir aquilo, mesmo pensando que era mentira. E eu realmente acreditei que era mentira, eu tive alta da clínica ainda acreditando que eles não iam conseguir me consertar. É engraçado. Eu me sinto consertada agora, não para sempre, mas por um tempo que creio ser suficientemente longo. É, me sinto controlada. Pelo menos por enquanto. Estou feliz. Estou um pouco assustada porque há muito, muito, muito tempo eu não me sentia bem assim sem motivo nenhum. Mas estou feliz. Creio que logo terei forças para enfrentar o mundo de novo, quem sabe voltar a estudar sem precisar trancar metade das matérias, quem sabe aulas de inglês ou francês, quem sabe.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A casa dos artistas - Enfim, de volta ao mundo lá fora.



Foram 27 dias de internação.

"Alô. Casa dos artistas, pois não."

"Deus, eu não pedi por isso, eu não pedi por isso, eu não pedi por isso. Dói de mais, dói de mais, dói de mais. Doutor me ajuda, POR FAVOR, ME AJUDA"

"Por favor, por favor, por favor, por favor, por favor...."

"Me solta, me solta, ME SOLTA."

A garganta dói de tanto fumar e engolir comprimidos, e não há muito mais para se fazer além disso. Cada louco com sua mania, é o que dizem. É verdade, cada louco com sua mania, preso em seu próprio inferno, solitário mesmo que acompanhado. Lá dentro, é cada um por si e um enfermeiro por todos. Todos nós nos entendemos e nos afastamos devidamente caso alguém entre em crise. Nesses momentos, os enfermeiros aparecem e restauram a "paz" tênue do ambiente coletivo, isso quando os gritos do louco da vez não acabam por perturbar todos os outros por horas a fio. É algo como uma bomba relógio, não, é algo como umas 30 bombas relógio convivendo juntas 24 horas por dia, 7 dias por semana. Tá na cara que não vai dar muito certo, mas mesmo assim arriscá-se, não há muito que se possa fazer quanto a isso. Um enfermeiro passa por você, ou um médico, ou uma das professoras, ou um psicólogo:

"Tudo bem?"

"Tudo bem."

Eles parecem sempre passar correndo. Intercorrências. É como eles chamam. Intercorrência na UCE masculina. Intercorrência na UCE feminina. Intercorrência na Unips 2. Intercorrência para todo lado. Traduzindo: Um paciente saiu do controle, uma das bombas relógio explodiu. Se você não está muito mal ou já está lá há algum tempo lá, você vai ter que ter paciência porque todos os funcionários sempre vão estar ocupados com alguém que precisa de mais atenção do que você e você vai se frustrar porque, obviamente, para você o seu problema é o pior possível, o mais insuportável e  incomodo possível, quando na verdade não é e essa é uma das lições que algumas pessoas acabam por aprender ali dentro. Você não é o pior caso. Há sempre alguém pior do que você. Você não é um caso perdido, há chances para você melhorar e ficar bem, muito mais que para você piorar e acabar vivendo de internação em internação. Não tem como saber qual vai ser seu destino, mas espera-se o melhor, e com razão.

E tem o efeito dominó. Uma bomba relógio explode, o que acaba gerando outra explosão, e mais uma, e mais uma e mais uma. Não era difícil acontecer, eu mesma diversas vezes, lá dentro, tive que ser medicada porque não estava passando bem porque algum dos pacientes estava mal e me atormentando, é simplesmente duro de mais ver uma amiga sua começar a ouvir vozes que mandam ela se matar por exemplo, o que obriga os enfermeiros a amará-la na cama, onde ela fica se debatendo e gritando de forma desesperadora de se observar. É difícil, é muito difícil. Havia dias em que ficava difícil até de respirar, de tão pesado que ficava o ar daquele lugar. Era quase sombrio, aterrorizante. Nesses dias não importava nada o fato de haver um jardim bonitinho ou você estar em um quarto melhor do que outro. Todo mundo ficava mal, cada um a sua maneira única. Cada louco com sua mania, todos iguais, enfim.

Eu nunca vou me esquecer dos dias em que eu passei na Casa dos Artistas (como a clínica foi chamada um dia, atendendo a um telefonema e em outros quando queríamos rir um pouco). Sei que todas as coisas que passei lá vão me acompanhar para sempre, tanto para me atormentar quanto para me fazer sorrir de saudade dos amigos que ali fiz e dos momentos bons que vivi com eles. Adeus Casa dos Artistas, estou de alta, o pessoal de casa tudo votou em mim para me tirar de lá. Adeus.