"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Carta para a criança que eu fui



Querida Amélia*,

Você se lembra que mesmo antes de ser capaz de se lembrar
Já tinha algo de errado
Em seu pequeno corpo de menininha
A palavra inocente não vinha
Só asco, vergonha e culpa
Repulsa
Amélia, você se lembra como doía?
Simplesmente habitar nesse pequeno corpo sujo, impuro?
Amélia você sempre sentiu como se tivesse sido marcada a ferro e fogo
Como gado
Como presa
Como a próxima vítima a ser abatida
Quando nosso corpo e mente entraram em cisão pela primeira vez?
Você se lembra?
Em que momento exatamente nos tornamos duas?
Amélia, o passado dói e eu sinto como se ele estivesse acontecendo de novo e de novo
Minha psicóloga diz que eu tenho que te amar e cuidar de você
A criança que eu fui
Mas sabe
Pequena Amélia
Pra mim
Cá entre nós
Você
Suportando toda essa violência
Você
Com esse sorriso de criança
Você realmente
Me parece incrivelmente forte

Amélia*: Codinome. Apelido de infância. Como minha vó me chamava porque dizia que eu era muito devagar, muito tranquila, muito distraída, perdida em meu próprio mundo.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Senti minha falta



Tudo estava um pouco intenso de mais. Sentia minhas emoções indo de um extremo ao outro em poucos minutos. A minha vida é um pouco assim, às vezes sinto como se já tivesse morrido, às vezes estou tão viva que até respirar dói. Não há equilíbrio. Nunca conheci nada semelhante. Meu coração dispara de repente como se eu estivesse em perigo, ou então eu quero chorar do nada,  ou então um riso nervoso toma conta de mim. Meus dedos inquietos digitam sem parar no celular, falo com muitas pessoas ao mesmo tempo quando estou assim, meio que tentando preencher o vazio dentro de mim.

Me cortei ontem, foi um desastre, fui sozinha pro hospital levar uns pontos, em 3 dos exatos 9 cortes que fiz... Sempre múltiplos de 3... Vocês lembram? Apesar de tudo... De todos os sintomas, dos cortes... Às vezes me pego feliz. Como se tivesse sentido falta sabe. Passei dois anos fugindo de mim. Faz dois anos que não sentia sintomas do borderline tão forte. Isso é um sinal de que a Sabrina está de volta. De que ela está viva aqui dentro. Não é? Preciso que ela esteja.

Senti falta de mim. Meu corpo não é mais o mesmo. Isso é o que me deixa mais triste. Eu odeio o espelho. Odeio meu corpo agora muito mais do que antes porque não sinto que ele me pertença. Queria não ter mutilado meu corpo a esse ponto. Queria voltar no tempo. Queria morrer às vezes.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Deixe ela voltar

Quero arrancar minha blusa
Mostrar esse peito
Essa cicatriz onde um dia
Ouve seios
Como quem grita e chora
De desespero
Quero poder voltar no tempo
Quero me cobrir inteira
Me esconder
De qualquer olhar
De qualquer julgar
De qualquer estranhar e perguntar
É menino
Ou é menina?
Quero dizer aos prantos minha sina
Que nasci menina
Que nunca me foi dada a escolha
Que sangrei como todas
Que me odiei  como todas
Que quebrei espelhos
Guerreei com guarda-roupas
E balanças
E que descobri tarde demais
Que todas essas regras
Existem para serem quebradas
Porque se nós meninas
Não as quebrarmos
Elas nos quebrarão
Quero dizer que me invadiram
Me habitaram
Me ensinaram
Coisas confusas e contraditórias
Queriam me dizer homem
Porque minha masculinidade
Enquanto mulher
Não era aceitável
E me fizeram acreditar que mutilar
Minha mulheridade
Seria algo empoderador
Bom
Positivo
Para mim
Para minha autoestima
Fizeram com que eu acreditasse que essa era a única forma
De eu ser feliz
De eu poder existir
Sendo homem
Eu escrevo hoje como apelo
A todas as mulheres
Que estão sendo enganadas pelo Queer
Por favor
Ainda há tempo
Para voltar atrás
Por favor
Se ame
Cuide de você
Existe outras maneiras de ser feliz
Essa não é uma delas
Automutilação e fuga não é uma saída.
Por favor
Deixe ela voltar.