"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O que eles disseram



Quando eu fui internado pela primeira vez, eu lembro de ter me aberto bem com o psiquiatra que me atendeu. Queria que ele resolvesse o meu caso o mais rápido possível, queria ficar bem logo, queria ser só uma garota normal... Mas apesar de todos os meus esforços... Ele insistia em dizer: "A Sabrina tem algo dentro dela... Algo grande que ela ainda precisa libertar.". Eu procurei por esse "algo" e, na época, não pude encontrar. Hoje eu entendo, sim... Hoje, me olhando no espelho como Samuel, orgulhoso, eu entendo. Obrigado Doutor, você foi o único que percebeu, o único sensível o bastante para transpassar todas as barreiras que eu construí com tanto afinco.

É engraçado... Cada pessoa reage diferente frente a uma novidade tão "assustadora" quanto a que uma pessoa que você conhecia há muito tempo na verdade se enxerga como sendo pertencente ao sexo oposto. Ainda não tive nem coragem de contar pra minha médica. Minha psicóloga e minha mãe se uniram na campanha "você-está-em-surto-psicótico", "borders-tem-personalidades-instáveis" e "isso-é-só-sua-doença-te-deixando-confusa". Não faço ideia do que meu pai pensa, porque como ele não fala, é tudo um mistério. Alguns colegas e amigos reagiram muito bem, outros eu ainda estou esperando a reação... e pensando se tudo o que eu vou ter vai ser esse silêncio horrível e omisso, como se eu, e como eu me sinto, não tivesse importância ou relevância alguma. Provavelmente não tem mesmo.

Bem, o que importa? Só eu sei o que se passa em minha mente e coração. Samuel significa "seu nome é deus". Esse nome surgiu na minha cabeça espontaneamente, então, se meu nome é deus... eu devo saber o que estou fazendo. Confie em mim, me escute, entenda-me... Minha personalidade não está instável simplesmente porque ela continua exatamente igual, o que mudou foi que eu descobri a qual gênero eu realmente pertenço. Não estou em surto psicótico. Sério, olhe para mim, fale comigo, ande ao meu lado, eu pareço psicótico para você? Eu acho que não. Eu acho que um psicótico não conseguiria escrever um texto coerente como esse. Se eu estou confuso? Na real? Eu falo que estou confuso porque sei que falar a verdade vai assustá-los, mas tudo parece tão certo aqui dentro. Eu não me sinto confuso. Eu me sinto Samuel.

Carta de despedida 01



Antes de tudo, acho melhor eu me apresentar. Meu nome é Samuel. Tenho 21 anos e não faço nada da vida pois minhas doenças psiquiátricas têm me impedido. Ou seja, há muito tempo sou um peso morto na vida das pessoas que me cercam, não sirvo para nada, não avanço para nenhum lado, não cresço, não evoluo... Só dou mais e mais trabalho e despesas. E bem, venho por meio desta carta me despedir. Mãe, pai... Eu menti para vocês a minha vida inteira, eu escondi tanto, tanta coisa de vocês. Me desculpem, mas creio que nunca confiei em nenhum de vocês, sempre tive medo de que vocês não me aceitassem, não me compreendessem ou me amassem do jeito que eu sou. Mãe, pai, a verdade é que eu nunca fui a garotinha que vocês queriam que eu fosse. A verdade é que eu nem ao menos sou uma garota. Me desculpem. Mãe eu sei que você quer que eu use saias e vestidos e vá na igreja com você, mas eu me sinto tão miserável usando roupas de femininas, não consigo mais mãe. Não mais. E sabe as aulas de natação que eu me recusei a continuar indo? Foi porque eu não aguento ter que usar o vestiário feminino, me sinto totalmente desconfortável com meu corpo exposto ali... E me sentiria muito mais no vestiário masculino. Não há lugar para mim mãe. Não existe uma zona neutra. O mundo é binário demais e eu odeio isso.

Amigos... Vocês não estão sabendo de nada. Vocês ainda me conhecem pelo meu nome antigo. Eu não contei para vocês porque sei o quanto vocês são preconceituosos com pessoas transexuais. Já fiz algumas perguntas sobre transexualidade para vocês e as respostas não foram nada positivas... Tenho medo da reação de vocês, tenho medo das risadas, de como vocês vão me zoar e não vão me ouvir ou levar a sério. E isso vai doer, vai doer demais. Mas realmente gostaria de poder ter uma conversa civilizada, uma em que eu poderia explicar como eu me sinto. E então vocês poderiam ser um pouquinho mais compreensíveis. Me desculpem por esconder algo tão importante assim de vocês.

Amor, eu tinha muito medo de falar sobre isso com você. Eu achava que você poderia me deixar por conta dessa descoberta. Mas como sempre, você me surpreendeu. Obrigado por me aceitar do jeito que eu sou e me amar acima de qualquer coisa. Eu te amo de toda a minha alma... Por favor, nunca se esqueça de mim e no quanto você pode fazer bem para uma pessoa que um dia a vida tanto machucou. Eu estava me sentindo tão sozinho, é bom saber que agora eu tenho uma aliada... Mas mesmo assim eu tenho que ir. Sinto que não há lugar nesse mundo para mim, não mais. Meus pais nunca me aceitarão, meus amigos nunca entenderão, eu nunca vou conseguir tudo o que realmente quero... A vida é um pouco dura demais. Ser transexual é sofrer todos os dias a sua identidade roubada, é não ter o direito de ser quem você é.

Olá, meu nome é Samuel. Transexual, 21 anos. Borderline, Esquizofrênico. Apaixonado. Eu já pensei em escrever milhares de cartas de despedidas, mas essa é a minha primeira.

Adeus.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

Uma questão de gênero



Me olho no espelho, completamente nu. A primeira coisa que gosto de notar é meu cabelo, curto, repicado, bagunçado. Um caos. Do jeito que eu gosto. Sorrio para minha imagem com orgulho. Se eu me concentrar só no meu rosto, no meu cabelo, eu gosto do jeito como eu pareço, do jeito como sou. Não é tão ruim assim... É? Meu sorriso vai sumindo a medida que meus olhos vão descendo pela imagem de meu corpo. Meu deus, porque tudo está tão errado? Escondo meus peitos com uma das mãos e meu sexo com a outra. Fecho os olhos sentindo as lágrimas escorrerem pelo meu rosto, desejando de todo meu coração que isso seja só um sonho ruim, desejando que quando eu os abra eu tenha um corpo condizente com meus sentimentos. Mas eu sei, eu sei que nada vai mudar...

Meu nome é Samuel. Todos os dias eu abro minha gaveta e só encontro calcinhas lá, sou obrigado a vestí-las. Meu armário está lotado de roupas femininas e todos os dias eu luto para achar uma combinação mais andrógena possível. Eu não tenho como esconder meus seios ainda, pois não tenho faixas ou binders, então eu improviso vestindo camisetas sobrepostas e casacos largos, mesmo quando o calor é insuportável. As vezes as pessoas na rua acertam minha identidade de gênero e me tratam como menino, mas é humilhante sair com quem me conhece, e não me entende, e ser tratado como menina. E todos os dias tem esse maldito espelho, que eu encaro, às vezes por horas a fio, imaginando quando eu terei o corpo que eu deveria ter nascido com.

Eu me pergunto muito, por que deus me fez desse jeito? Por que eu sou um menino, preso em um corpo de menina? Não faz sentido. Mas esses dias comprei minha primeira calça masculina, minha primeira camiseta masculina... E eu me olhei no espelho, no mesmo espelho que eu chorava todos os dias de tristeza e pela primeira vez na vida, eu chorei de alegria. E eu pude entender porque deus havia me feito dessa maneira.

domingo, 10 de agosto de 2014

Eu nasci para viver livre ou morrer jovem



Não destrua o amor. Não, não faça isso. Meu monstro se mexe inquieto dentro de mim e sussurra em meus ouvidos que eu devo me cortar. Só um pouquinho, só mais um pouquinho... Já faz tanto tempo. Ele, eu, não, ele, quer sentir o cheiro do sangue escorrendo pelos meus braços mais uma vez. Tão... Tranquilizante, tão energizante. Fecho meus olhos e a única coisa que eu vejo é meus braços cobertos de sangue. Quero chorar, quero sair correndo, quero gritar. Amor, o que eu faço? Passo minhas unhas sobre minhas cicatrizes, elas coçam como se gritassem para serem abertas novamente. Meu deus, meu deus... Passo pelas farmácias em guerra comigo mesma, quase me contorcendo. Eu preciso de uma gilete, eu preciso, eu preciso. Não, não e não! Sim, por favor, por favor. Se corte, se corte, se corte, meu mostro canta em minha mente. Minha cabeça dói e eu tento me lembrar de todas as coisas ruins que vão me acontecer se eu me cortar. Mundo, sociedade, amor, doutoras, mamãe... não me internem de novo, por favor, por favor, eu não vou aguentar mais uma internação. Eu sei, eu sei que eu fico muito descontrolada, eu sei que eu sou um perigo para mim mesma e que para meu próprio bem eu preciso ficar trancada em um lugar controlado e vigiado durante um tempo as vezes... Mas... mas... Sabe, é tão triste. Aquilo acaba comigo. Eu nasci para viver livre ou para morrer jovem. E cada vez mais eu me convenço que meu caso está mais para a segunda opção.

Eu só queria poder fugir... Pegar o amor da minha vida pela mão e sair correndo para bem longe. Viver de luz e água fresca. Eu ficaria feliz. Por que as coisas não são simples e fáceis como deveriam ser? Por que tudo é tão difícil? Eu estou assustada e triste. Sinto que estou caindo... Eu sabia que isso ia acontecer, mais cedo ou mais tarde. Isso sempre volta acontecer. Um período bom sempre é seguido de um período ruim. Eu só não estava preparada para ele, eu nunca estou. Eu sempre esqueço o quão foda é viver com essa doença fora de controle. Eu sinto como se não fosse mais eu, ou será que só agora eu estou sendo eu mesma? Eu não faço ideia. Minha personalidade doentia me confunde e a existência do meu monstro me confunde mais ainda. Tudo o que eu sei é que eu estava indo bem e agora eu penso em me cortar como um viciado pensa em sua heroína. Não sei o que vai acontecer comigo, estou com medo. Voltei a pensar em me matar. Acho que seria melhor para todos.

sábado, 9 de agosto de 2014

Um pouco sobre a Esquizofrenia



Eu comecei a tomar um remédio novo. Eu comecei a ir em uma médica nova. Eu comecei a diminuir um remédio velho. E tudo começou a desandar. O remédio novo é para Esquizofrenia e Bipolaridade (novidaaaade), mais um antipsicótico. A Esquizofrenia... Decidi falar um pouco mais sobre a Esquizofrenia dessa vez. Eu não ando mais interessada em diagnósticos então não sei como minha nova médica me diagnosticou, mas eu já fui diagnosticada duas vezes como esquizofrênica na clínica onde eu costumo ser internada. Eu sempre sou diagnosticada como Borderline, depois como Border e Esquizo e por último como Bipolar ou Depressiva (o que está obviamente errado). Bom, eu lembrei dessa coisa da Esquizofrenia porque estava escutando aquela música da banda Nickelback, Never gonna be alone, que foi a música tema do casal daquela novela em que o cara tinha esquizofrenia, lembram? E a mãe não aceitava a doença dele e não deixava que ele se tratasse. Eu não acompanhava a novela, mas eu cheguei a assisti algumas cenas. Foi uma boa atuação, nem todos os esquizofrênicos são daquela forma, mas foi uma boa atuação de um esquizo em crise.

Na clínica, eu lembro, tinha os esquizos doidões, os que os remédios ainda não tinham começado a fazer efeito... Eles eram, como posso dizer? Livres. Eles viviam em seus universos, eles faziam o que queriam em total liberdade e conforto, ou desespero. Às vezes era tão bonito de se ver. E, bem, tinha os esquizo robozinhos. Que eram nós. Os que em um primeiro momento pareciam completamente normal, totalmente controlados pelos remédios fortíssimos, domados, amarrados, adestrados. Dizíamos por favor e obrigado e obedecíamos as enfermeiras como crianças ansiosas por aceitação e carinho. Nós nos importávamos com o mundo a nossa volta, eles tinham nos ensinado a força a nos importar, tínhamos sido dobrados. Era esse o objetivo da clínica, "recuperar" o doente mandá-lo de volta à sociedade. Logo seríamos "normais" o suficiente, pelo menos por fora, para irmos embora.

De qualquer jeito, voltando à novela, lembro que naquela época eu ainda não me cortava, nem tinha diagnóstico de nada e meu sofrimento ainda era um segredo. E minha mãe era contra o casal esquizofrênico e sua namorada. Ela costumava dizer "magina! Um doente assim tem que ficar sozinho, só vai dar trabalho para ela!". Que ironia. Anos depois a esquizo problemática é sua filha. Mãe, eu mereço ficar sozinha? Mamis... Eu vou provar pra você que eu não sou um peso inútil e que eu posso fazer minha namorada feliz. Mesmo tento tantos problemas. Porque sabe... As vozes vem e vão, minha visão distorce e volta ao normal, as alucinações aparecem e desaparecem, mas ela sempre está lá para mim. Mesmo em meus delírios, lá está ela. Mesmo em minhas explosões, mesmo quando a machuco sem querer... Lá está ela. E ela me ama. E eu a amo. Eu me sinto um lixo por ser quem sou, por dar tanto trabalho e dor para as pessoas a minha volta, mas eu... não vou ficar sozinha, sabe por que? Porque ela me prometeu que estaria ao meu lado. E eu vou estar ao dela. Eu vou fazê-la sorrir todos os dias e assim, eu vou ser útil, não vou?

Sabe, eu já conheci muitos esquizofrênicos durante minhas 5 internações nesses últimos dois anos e meio, e tem gente que fala que eles não são afetivos... Mentira. Os esquizos amam e muito. Os esquizos são só pessoas... Exatamente como você, só um pouquinho diferentes.