"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Monstros da fronteira





A vida na fronteira é bem agitada, as guerras entre os dois lados são constantes e para piorar parece que algo em mim tem uma mania quase compulsiva de desafiar meus limites, brincando de passar de um lado para o outro como quem brinca de amarelinha.




Eu não costumava viver na fronteira, mas minha vida me levou até aqui. Agora essa é minha casa. Viver aqui é bem difícil, há um peso sufocante no ar, cheiro de guerra e morte, cheiro de destruição, os dias são cinzas e as noites estranhamente estreladas, como se enganassem a gente. Há poucas pessoas que vivem aqui, a maioria são mulheres, todas com tendância ao isolamento, à agressividade, ao choro, à automutilação, à dor. Quando estamos do lado de cá só precisamos lidar com esse clima insuportável, com essa inconstância de não saber o que vai acontecer no momento seguinte e obviamente esse vázio dessa vida sem sentido em meio a uma guerra sem heróis. Digo "só isso" porque o lado de lá é pior. O lado de lá é uma terra sem dono, daqual voltamos com os pulsos cortados, corações dilacerados e mentes divididas. Pisar naquele solo sempre parece uma viajem sem volta, onde seremos perceguidas por nossos fantasmas, ouviremos coisas, sentiremos coisas e veremos coisas que ninguém nunca deveria ver, ou sentir, ou ouvir. A situação é sempre de extremos, fazemos coisas que dizíamos para nós mesmas que nunca fariámos... Mas então, de repente, na maioria das vezes, acabamos voltando para o lado de cá, quer seja carregadas, quer seja se arrastando, quer seja com sintomas fortes qualquer coisa de ruim, mas voltamos. Nem todas, é verdade. A porcentagem de morte por aqui é bem alta.




E nós lutamos! Todos os dias, de todas as formas possíveis... Mas a vida na fronteira é tão difícil! Somos todas machucadas de mais, fracas de mais, sensíveis de mais. Nos perguntamos todos os dias porque justo nós, tão fracas, fomos enviadas para viver aqui. Poucas percebem que é justamente essa fraqueza, essa tristeza, essa dor, que nos levou até aqui. Viver é uma obrigação cruel e torturante. Tem aquelas que se matam, e pá! Fim dos problemas. Tem aquelas que atravessam a fronteira pro lado de lá e acabam vivendo ali, perdidas, não tem jeito mais. Tem aquelas como eu, que lutam contra essas forças que nos empurram de um lado para o outro cruelmente. E tem aquelas que encontram uma milagrosa estabilidade e vivem do lado de cá, sofrem também, é verdade. Mas o pior já passou.




Ah! Mas falando assim parece que somos vítimas dessa guerra sem sentido. Não se engane. Somos crueis também, a guerra nos ensinou a ser assim, somos vingativas, desconfiadas e irritadiças. Intolerantes, cheias de ódio e agressivas. Somos monstros, não se engane. Não sinta pena dessas lágrimas, não... não... A mesma mão que as enxuga, a mesma mão que treme de medo e pede ajuda... É a mão que segura a lâmina e dilacera o próprio corpo, é a mesma mão que arranha e bate. E essa guerra, essa guerra... Somos todas nós contra nós mesmas. Ora, vítimas? Será? Não, não... Agressoras. Fazemos coisas horríveis. Contra nós mesmas, dizemos dando os ombros, como se fossemos menos do que as outras pessoas, como se merecessemos, como se isso fosse mais certo do que fazer mau a qualquer outra pessoa. Como somos injustas.




Olhe aqui fronteiriça, olhe no espelho. O que a faz pensar que essa pessoa que você vê merece que você faz? Não estou dizendo de você! Esse monstro. Estou dizendo essa pessoa ai, te olhando. Essa garotinha com os olhos úmidos, tão indefesa. Como você pode fazer uma coisa dessas com ela?

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