Ninguém a ouviu chorar, ninguém deu ouvido a seus gritos, seu silêncio, sua solidão. Sem mãe, sem pai, sem irmãos ela cresceu e aprendeu a se virar sozinha, sem nada, sem ninguém. Ela ouviu tudo, viu tudo, viveu tudo, acreditou em tudo... Tanto que hoje não acredita em mais nada. Alguém roubou sua infância, seu carinho, sua vida. Ninguém viu, ninguém ouviu. Errando pelas ruas com seus sapatos furados e roupas sujas ela sorria, na inocência de não conhecer vida melhor da que a que vivia. Ninguém viu, ninguém ouviu. Seus gritos desesperados durante a noite nos becos escuros e casas desconhecidas. Suas manhãs tristes, doloridas, confusas e inexistentes.
Cada dia em uma cama diferente com um papai diferente. Ela segurava com força a mão de todos, sem saber se queria arrancá-las de ódio ou se a agarrava em busca de um amor que sempre sonhou e nunca conheceu. Seu olhar vazio e sorriso passional, o tremor involuntário em seu pescoço, o andar manco e carinha de anjo. Tão linda, diziam. Venha passar a noite na minha casa, uma criança linda dessas não pode dormir na rua sozinha, o bicho papão pode passar e te levar. Ela concordava com a cabeça e se deixava levar. As vezes ganhava comida e leite quente, em troca tinha que ficar sem roupa e fazer exatamente o que o papai daquela noite queria que ela fizesse. De noite sonhava com monstros enormes com dentes afiados que a comiam viva. Como se isso não acontecesse sempre quando ela estava acordada.
Ninguém viu, ninguém ouviu. Ela passa pelas ruas sem destino, estendendo a mão em busca de outra que a segure e em vez disso recebe moedas. As vezes fica irritada, pega as moedas sem sentido no bolso e as bate no asfalto até esfolar todos os dedos, as vezes rasga a mão de propósito em coisas afiadas, ela prefere ver o sangue escorrendo das mãos e dos braços do que do meio das pernas. Seu pequeno coração bate com tanta força em seu peito que ela tem certeza que um dia ele vai pular pela sua boca e sair andando, as vezes dói tanto que ela se sente obrigada a parar, com o corpo inteiro tremendo e mãozinha incerta no peito, lágrimas nos olhos e uma sensação de que já morreu.
Ela a muito não lembra mais do caminho de volta para a casa. Todos os dias imagina que uma família linda e perfeita a espera e que ela só se perdeu em um dia de chuva, logo vão achá-la e salvá-la de todos esses monstros. E a pequena menininha vira todas as esquinas com a esperança que na próxima encontrará sua mamãe e papai de braços abertos. Por um motivo ou outro ela não se lembra ou não quer se lembrar, que quem a ensinou a ser boazinha e fazer tudo o que os adultos pedem foi seu próprio pai. Não... Os pais de verdade são heróis, um amiguinho um dia havia lhe dito, ela concordou e pintou em sua mente como tudo deveria ser, a ponto de acreditar.
Uma menininha linda dessas não pode dormir sozinha na rua.
Meu papai de verdade já já vem me salvar.
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