Momentos. Olho por sobre meu ombro direito e há uma marca de mordida, meio roxa, meio amarelada, parecia que alguém havia arrancado um pedaço de mim. Eu nunca tinha visto um machucado tão feio. Minha mãe passa pomada e não diz nada. Meu irmão observa de longe, com os dedos dentro da boca como se ainda fosse um bebê inocente. Esse pedaço que ele me tirou... Creio que nunca mais o recuperei. Brincando com as almofadas dos sofás na sala. Quero construir um forte, onde você não vai entrar, mas você só quer saber de destruir tudo. Joga uma almofada em minha cara e se joga por cima dela, me sufocando. Não posso respirar. É isso, vou morrer. É assim que é morrer? Não parece tão ruim assim. Vou só fechar os olhos e esperar... Meu irmão tira a almofada perguntando se eu tinha morrido. Empurro ele para longe e saio correndo. Pena que não exista um lugar seguro nessa casa. Brinca comigo? Meu irmão me pergunta. Me afasto incomodada, com minhas bonecas e bichinhos de pelúcia. Eles são todos órfãos, moram na rua e vão morrer de fome. Eu divido a pouca comida que tenho com eles. Não quero brincar com ninguém. Na escola minha professora me chama de egoísta na frente da classe inteira. Eu choro e não entendo. Por que ela está com tanta raiva de mim? Eu faço tudo errado. As outras crianças me olham e eu me sinto uma aberração. Eu sou uma aberração. Repito para todos os meus colegas na escola como eles devem se comportar para serem crianças boazinhas, mas eles me empurram e me chamam de chata. Eles não são boas crianças. Eu sou uma criança boazinha. Eu sou boazinha. Eu sou boazinha. Meu irmão me bate, ele tem raiva de mim, acha que eu roubo seu lugar... Mas eu nunca entendi, fico sempre tão quieta em meu lugar. Eu não roubo o lugar de ninguém. Eu só quero desaparecer. Brinco sozinha. As meninas puxam meu cabelo, pisam no meu pé, molham minha mochila, os meninos roubam minha lancheira e eu fico correndo atrás deles. Eles abaixam minhas calças na frente da escola inteira. Por que não me deixam em paz? Choro no banheiro e rezo para que ninguém me encontre. Ao longo dos anos eu aprendi a chorar sem fazer barulho, a dar um grito mudo, a controlar meu desespero. As meninas riem de mim, de tudo o que eu faço, de tudo o que eu falo, da minha roupa, do meu cabelo, do meu rosto. Eu sou feia, sou gorda, sou desajeitada e burra. Em casa eu vivo assustada, pronta para a próxima agressão, para o próximo abuso. Não me lembro de ter pais. Tudo o que lembro é dor e juntar moedinhas para comprar um sorvete.
Momentos. Eu não sou mais tão criança assim. Os meninos correm atrás de mim me xingando e rindo. As lágrimas silenciosas escorrem pelo meu rosto. Deus, porque você me fez assim? As meninas me empurram e machucam meu pescoço, dizem que eu sou feia, muito feia e riem também. Choro pela dor física, meu emocional está morto. Os meninos me cercam. Bocas maliciosas, não consigo olhá-los nos olhos, eles me anulam, de repente não existo mais. Estou em algum lugar distante, bem distante.... E eles podem fazer o que quiserem com meu corpo, porque ele não é mais meu. Eu não me importo. Morrer é assim? Não me parece tão ruim. De repente acordo como se uma corrente de eletricidade tivesse passado por mim. Quero dizer não, quero que isso pare, eu preciso muito dizer não, eu preciso, eu preciso. Nada sai da minha boca e de novo eu sinto o gosto amargo da derrota. Só meu corpo fala por mim, ele se retrai e eu sinto como se tivesse diminuindo cada vez mais. Eu poderia desaparecer. Eu poderia morrer. Não seria ótimo? Caminho em direção a nossa varanda... Não sinto nada. O sol é lindo. Eu não existo. Desabo no chão e choro, choro como nunca chorei em toda a minha vida. Choro pela minha vida, choro por tudo o que eu passei e estava passando, choro porque pela primeira vez na vida eu consigo entender o quanto isso é injusto, choro por quem eu sou, porque estou sendo assassinada desde os primeiros dias da minha vida. E ninguém enxerga. De repente as risadas que eu estava ouvindo, talvez de algum outro apartamento, param... E também, pela primeira vez, eu tive a sensação de que alguém estava me ouvindo e me levando a sério. Seja lá quem parou de rir, parou para ouvir minha dor e isso me ajudou, me ajudou a me levantar, com uma força que hoje em dia eu não teria mais.
Momentos. Encontro um livro totalmente em branco mexendo nas coisas do meu pai e o pego para mim. Eu vou escrever. É isso que eu vou fazer. Vou inventar uma língua só minha e contarei histórias fantásticas, em um mundo onde crianças são só crianças, onde elas não pensam em sexo o tempo todo e sim em grandes aventuras. Os raios de sol passam pela minha cortina deixando meu quarto alaranjado, esse é minha hora preferida ali. Meu irmão segura o livro onde eu já havia começado a escrever uma história e dá risada. Ele diz que eu sou uma idiota por sonhar em ser uma escritora, que eu sou patética e tantas outras coisas... Aquilo, aquele livro... Era a minha esperança e ele estava bem ali, rabiscando tudo, estragando tudo como se não fosse nada... Avanço para cima dele e consigo pegar o livro, saio correndo e chorando. Eu nunca vou ser uma escritora, nunca, nunca, nunca. Nunca mais consegui escrever uma frase se quer naquele livro. Mas eu o abracei naquele dia, meu sonho morto, e o enterrei na minha estante para sempre. Não gosto mais de histórias fantásticas. O mundo é duro, e vai matar todos os seus sonhos, então é melhor que você não tenha nenhum.
Momentos. Festa de 15 anos de alguém. Eu me sinto bem em meu vestido, mas não consigo deixar de olhar para as outras meninas e me comparar a elas. Eu sei que nunca vou ser tão bonita como qualquer uma delas. Mas eu gosto do meu vestido. Quero me divertir, quero ser normal. Tento dançar mas eu sou um fracasso. Como as outras meninas conseguem se sentir tão bem? Dançar tão bem? Tenho tanta vergonha. Aparece um menino e ele me elogia. Nenhum menino nunca havia me elogiado. Meus olhos brilham. Estou lisonjeada, ele me escolheu! Me sinto menos feia, porque ele me abraça e me beija e fala coisas bonitas. Concordo com tudo o que ele fala, quero que ele goste de mim, que continue gostando. Ele me pede meu telefone, eu dou. Ele liga, ele vem me buscar. Eu abandono o mundo por ele... Só porque ele me elogiou, só porque ele me abraçou. Agora eu entendo o quanto eu precisava de alguém para me fazer isso. Eu vou com ele, para onde ele quiser, para fazer o que ele quiser. Estou sozinha, está escuro, estou sem roupa e tremo, mas não é de frio. Ele parece tão grande, não consigo olhar em sua direção. Eu estou sozinha, eu estou sozinha, eu estou sozinha. Fecho os olhos e já não rezo porque sei que Deus a muito tempo me abandonou. Eu só fecho os olhos e tento controlar o fluxo de lembranças horríveis invadindo minha mente. Quero dizer não, quero dizer não, preciso dizer não, preciso muito dizer não... Mas nada sai da minha boca. Eu só tremo e tremo e tento me afastar. Me sinto uma criança idiota. Quero só chorar no meu canto. Quero desaparecer. Por favor mundo, me deixe desaparecer. Abro a porta de casa, eu estou totalmente quebrada por dentro, e ninguém vê. Meus pais estão me esperando, brigando comigo. Eu grito, eu finalmente grito, o grito que estava entalado na minha garganta naquele momento e me tranco em meu quarto. Quero morrer, quero morrer, por favor Deus, me mate. Eu sempre faço tudo errado, tudo... Como pude ser tão burra?
Momentos. Desligo o telefone depois de uma briga com meu melhor amigo. Eu estou sorrindo, porque não sou eu. Estou sorrindo porque sou um monstro e estou vendo um estilete na minha mesa. Eu o pego calmamente e me corto no braço esquerdo. Eu nunca havia sentido nada parecido, era como uma droga, circulando pelas minhas veias, me trazendo de volta a vida, me animando, me salvando. Me viciei. E foi o início do fim.
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