"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

sábado, 6 de agosto de 2011

Releitura de uma velha história - Lúcifer


Vivo em um mundo marcado pela dualidade. Todas as pessoas com o mínimo de dignidade vivem bem longe do chão, são as pessoas consideradas boas, moram em andares cada vez mais altos, em prédios cada vez maiores. Todas as pessoas consideradas ruins vivem na superfície, tocam com seus pés o chão imundo, moram em seus barracos térreos e decadentes. É assim que as coisas são aqui. Lá embaixo o mundo é feio, sujo, repulsivo, as piores pessoas habitam ali e vivem suas vidas miseráveis sem lei ou regra que os impeça de cometer as piores atrocidades. É fácil reconhecer um pé-no-chão, eles são muito brancos, porque o sol não chega onde eles estão, possuem olhos profundos e maldosos. Lá no alto a vida é linda, aparentemente todos são felizes, o Estado garante a melhor qualidade de vida possível e nós retribuímos trabalhando a serviço dele, não existe vandalismo ou miséria, todos são iguais perante a lei e todos possuem os mesmos direitos, é perfeito. Também é fácil reconhecer um anjo (que é como nós nos chamamos), são morenos e saudáveis, abençoados por um sol lindo e constante, são sorridentes e padronizados.

Eu nasci no topo, na altura do décimo quinto andar de um prédio qualquer, uma boa altura. Porém eu sou diferente... Nasci com um defeito. Sou terrivelmente branca, tão branca que até meus cabelos e olhos são totalmente brancos. Pareço um fantasma... É terrível. Sou a única pessoa branca do mundo superior, o sol me faz mau, muito mau alias. Não tenho muitos amigos, minha aparência de ser inferior assusta as pessoas, elas pensam que eu tenho sangue de pé-no-chão. Mantenho meu cabelo cortado bem curto, odeio ele, se eu deixasse comprido chamaria mais atenção do que já chama e uso capuz e mangas compridas, enquanto meus colegas exibem braços, ombros e pernas perfeitamente morenas. Eu odeio quem eu sou porque por mais que eu queira e até tente ser como os outros, eu não consigo nem nunca vai conseguir. Uma vez tentei tomar sol por tempo suficiente para minha pele escurecer... Fui parar no hospital com queimaduras terríveis.

Aqui em cima a vida é linda e perfeita e eu a odeio.

Quando eu tinha 9 anos, depois de me recuperar das queimaduras que me levaram para o hospital, eu decidi encontrar uma forma de descer até o chão, afim de ver se as pessoas lá embaixo eram como eu. Talvez meu lugar fosse lá. Há um "chão" artificial que separa o mundo de cá e o de lá e são pouquíssimas as passagens ainda existentes de um lugar para o outro e a grande maioria delas é vigiada. Com muita dificuldade eu consegui encontrar um buraco que me permitiu descer, imagino que a sorte estava ao meu favor.

O mundo inferior era muito pior do que as histórias contavam, é verdade. O cheio, o ar, a falta de luz, tudo, tornava o lugar assustador e pesado. Olhei a volta, imaginando que meus olhos deveriam estar brilhando no escuro e chamariam a atenção facilmente, mas não estava assustada... Só curiosa. Caminhei entre as montanhas de lixo e logo avistei pequenos barracos, entre eles crianças magricelas corriam com os braços nus... Brilhantes de tão brancos. Sorri. Nem todos tinham cabelos brancos como os meus, mas uma boa porcentagem era absolutamente igual a mim. Quando me aproximei pensei em me enturmar, brincar com eles, mas eles olharam para mim com seus olhos grandes e maus e em uma súbita explosão de gritos de alegria começaram a atirar pedras em minha direção. Sai correndo assustada, mas não demorou para que eu começasse a rir também e atirar pedras de volta.

Os pés-no-chão possuíam uma maldade curiosa em seu jeito de ser, as crianças apanhavam em casa e batiam nos mais novos, homens batiam em homens, que por sua vez violentavam mulheres que por sua vez humilhavam outras mulheres ou crianças, crianças mais velhas violentavam as mais novas, que por sua vez violentavam as mais novas, que por sua vez se aproveitavam das mães, que por sua vez enganavam seus homens. Se um juiz tivesse a paciência de julgar cada um dos infindáveis casos de suposta "injustiça", chegaria a conclusão que não existia culpados e vítimas. Todos sofriam as mesmas coisas e infringiam o mesmo sofrimento a outras pessoas e assim por diante e no entanto, todos eram incrivelmente indiferentes e fortes, não se via lágrimas, não se via reclamação. Só uma dança surreal de relações sem regra e maldade não reprimida. A sinceridade era extrema e por mais cruel que parecessem ser, de alguma for que um anjo nunca saberia entender, havia algo que os conectava, algo que os permitia sorrir e se reconhecer entre eles, existia algo que os tornava irmãos, um era totalmente capaz de se ver no outro.

A vida lá embaixo era horrível e feia e eu a adorava. Passei por muita coisas nas vezes que fugi para lá e aprendi a fazer os outros passarem por isso também, descobri o gosto da maldade, a atração pela dor. E levei isso para o mundo lá em cima. Me tornei uma hipócritazinha de primeira, aprendi a não me envergonhar pela minha aparência e a cativar os anjos, eles sentiam pena de mim e me davam uma chance, pelo meu sorriso infantil e suposta inocência e minha pobre pele, branca como neve. E eu os destruía um por um, com pequenas falas, pelas entrelinhas, por pequenas ações... Os mais fracos se mostravam vítimas fáceis, se matavam. Os mais fortes aprendiam a maldade sutil lindamente.

Eu rebaixei o céu ao nível do chão, eu cortei as asas dos anjos, eu matei a perfeição, eu apaguei o sol. Vocês devem me conhecer.

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