"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Melodia e desenhos.



Lá está ela. Sentada em seu canto desenhando seus desenhos assustadores enquanto permanece cantarolando a mesma música dia após dia. Clara não era como as outras crianças da escolinha, a professora notara rapidamente que havia algo de errado com ela, ninguém sabia o que, mas que havia algo de estranho, havia. Clara chegava todos os dias na mesma hora, dez minutos antes do horário da aula começar, sentava em sua mesa no fundo da sala, puxava seu bloco de desenhos e com um sorriso vazio no rosto, se punha a desenhar até a hora de ir embora. E claro, sempre cantarolando baixinho a mesma melodia. Ela tinha 5 anos e um grau de socialização mínimo, apesar de não apresentar nenhum retardo mental ou de desenvolvimento. Clara era inteligente quando solicitada para responder alguma coisa, falava bem e de forma totalmente coerente, também já sabia ler e escrever, a primeira criança da sala a aprender. Mas havia algo de errado, a professora tinha certeza. Mas o que?

Naquela manhã a professora esperou que Clara chegasse no seu horário de sempre para tentar, antes da aula começar, estabelecer alguma conexão com a garota, sempre tão distante e quieta. Nunca prestara muita atenção em quem trazia a criança para a escola, mas nesse dia notou que a menina não vinha de mão dada com quem a trazia como normalmente as crianças apareciam por lá, ela vinha logo atrás, mantendo uma certa distância, olhando para o chão, corpo rígido. A mulher que vinha logo a frente dela, que deveria ser sua mãe, parecia confiante, nariz apontado para cima, andar totalmente equilibrado em seus saltos altíssimos, roupa perfeita, tudo perfeito. Clara entrou na sala como sempre, sem dar atenção para a professora ou para qualquer outra coisa, não demorou muito para que a sala vazia se enchesse com o cantarolar baixinho da menina que já desenhava em seu lugar. A professora se aproximou, fingindo interesse no desenho que ela rabiscava de forma violenta no papel (ela nunca tinha notado que a garotinha desenhava com tanta violência assim), tratava-se de monstros, como sempre, pessoas deformadas e outras coisas medonhas.

- Oi Clara... - disse ela se agachando ao lado da menina, tentando ignorar o fato da garotinha ter se afastado ligeiramente para o lado como se temesse o contato físico com a professora (talvez não só com a professora) - O que você tanto desenha?

- Minha família, meus sonhos, coisas que enchem minha cabeça. - disse a garota baixinho sem desviar os olhos do papel.

- Entendo... Parece que você gosta mesmo de desenhar!

Clara não pareceu feliz com a afirmação, mas permaneceu quieta.

- Uhm... E a música que você gosta tanto de cantarolar? Ela é muito bonita! Onde você a ouviu?

- Papai canta para mim, toda a noite.

A professora mau tinha entendido a resposta quando foi surpreendida com o som das outras crianças entrando na sala. Pensou em perguntar mais alguma coisa, mas achou melhor deixar para o outro dia, se as outras crianças vissem ela falando dessa forma com a Clara talvez elas pensassem que a garota estava recebendo um tratamento especial, o que não seria bom. Naquela noite a professora não conseguiu dormir devido a melodia que tanto a Clara cantarolava, ficou a noite inteira se perguntando porque diabos um pai cantaria tanto a mesma música a ponto dela se transformar praticamente em uma tortura. Obviamente que, da mesma forma que a música grudou de forma insuportável na mente da professora, isso também acontecia, de forma mais intensa, na mente da menina. No dia seguinte a professora tentou novamente conversar com Clara, porém dessa vez a menina estava mais esquiva do que o normal, mau respondia as perguntas e quando o fazia, o fazia utilizando monossílabas. Dia após dia a professora tentava, porém, quanto mais tentava menos progresso obtinha. Clara, antes escondida atrás de seu sorriso vazio, começou a se mostrar extremamente agressiva, inquieta, chorona. Seu progresso na escola estacionou e as poucas habilidades sociais que possuía desapareceram. A professora tentou lidar com a situação o máximo que pode, tentou ajudar a garota o máximo que pode, mas Clara simplesmente não queria colaborar, ou não podia colaborar.

A gota d'água foi um dia em que Clara estava especialmente quieta, não havia tido nenhum ataque de raiva até o momento e a professora estava começando a desconfiar da tranquilidade rara da menina. Foi só quando se aproximou da menina que percebeu o motivo dela estar tão quieta. A garota olhava a palma da própria mão ensanguentada, enquanto a outra segurava um caco de vidro encontrado sabe-se lá onde. Era demais para uma professorinha qualquer como ela aguentar. Clara foi mandada para uma escola especial. Havia algo de errado naquela garota, ela sempre soube.

- Clara, existe algum segredo que você queira me contar?

- Ele sempre canta essa música para mim. - Ela sussurrava, como se guardasse todos os segredos do mundo por trás dessa simples frase.

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