"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Desajustados



Sempre me perguntei o que havia de errado com aquelas crianças e adolescentes que, quando eu era menor, tornaram minha vida um inferno. Talvez essa não seja a pergunta certa, a questão é o que havia de errado com os pais delas e, antes, os pais deles e assim por diante. Enfim, o que havia e há de errado com nossa sociedade inteira.

Quantas vezes eu ouvi grito daquele meu amiguinho sendo espancado pela mãe? Quantas vezes eu ouvi a mulher do apartamento de baixo gritando para seus filhos o quanto eles eram inúteis e burros? Quantas vezes eu desejei que fosse eu no lugar deles. A menina órfã de pai que destruía minha autoestima para se sentir melhor, os garotos que jogavam suas inseguranças quanto sua sexualidade nos mais fracos, o pai que ameaçava os amiguinhos do filho, os dois meninos abandonados pelo pai que precisavam bater nas outras crianças para se sentirem bem. Infinitas formas de abuso passadas de geração para geração. O garoto com dificuldade de aprendizagem, o hiperativo, o gago, o precocemente sexualizado, todos incrivelmente cruéis e incompreendidos, Todos carregando histórias terríveis nas costas.

É impressionante o número de crianças desajustadas que podemos encontrar em um único lugar, é incrível o que cada uma delas pode fazer em uma terra praticamente sem lei, sem nenhuma supervisão de um adulto ou algo que as controle. Éramos todos crianças carentes de atenção, carentes de tudo. Naquelas tardes e noites intermináveis, acredito que muitos ali se sentiam meio órfãos. Grupos eram formados e desformados, lideranças feitas a base de tapa. Os mais fracos seguiam os mais fortes em busca de proteção, em respostas, os mais fortes faziam com eles o que bem entendiam. Era assim que as coisas funcionavam. Eu sempre fui meio excluída, rejeitada tanto pelos meninos quanto pelas meninas, também por todos os mais velhos, quanto pelos mais novos...  Alguns poucos gostavam de mim e esperavam que eu os protegesse, outros me maltratavam o máximo que podiam na esperança de ganhar crédito com os mais velhos. A sensação de ser um saco de pancadas me perseguiu durante muitos anos, mas apesar de tudo eu mentiria se dissesse que odeio qualquer uma dessas crianças e adolescentes com os quais eu dividi momentos tão intensos, quer seja para o bem, quer seja para o mau... A verdade é que, por um motivo que eu não entendo, eu olho com carinho para eles quando penso no passado, por mais que muitas lembranças me atormente de forma insuportável as vezes. Acho que apesar de ser rejeitada e excluída por muitas pessoas ali, eu me sentia parte de algo. Querendo ou não aquilo foi a minha casa e eles, minha família.

As memórias dessa época são as que permanecem mais vivas na minha mente, tanto boa quanto horríveis. Foi, com toda a certeza, a época mais marcante da minha vida. Ainda hoje me pergunto onde cada um de vocês está, o que fizeram de suas vidas, se superaram seus traumas e dificuldades ou não. Será que suas vidas se tornaram mais fáceis? Será que ainda escondem seus medos atrás da agressividade e outros vícios? Será que vocês repetirão os mesmos erros de seus pais quando for a vez de vocês terem filhos? Se pelo menos um de nós tiver aprendido alguma coisa com tudo o que vimos e vivemos e conseguir mudar o curso dessa história repetitiva, ao menos para mim, em nome do sorriso de uma criança no futuro, terá valido a pena todas as lágrimas que derramei.

2 comentários:

Melissa disse...

Eu tambem sempre tive essa sensação de ser o saco de pancadas. Sempre fui só eu la no meu canto, mas eles sempre quiseram me ver reagir, sempre quiseram me fazer ficar igual a eles. Hoje já terminei a escola e a muitos ainda estão lá, sem alguma decisão na vida, mas a fútil sexualidade é mantida.

Há uns dois meses atrás, eu estava esperando o ônibus, e o que saia na frente do meu, vai para um lugar bem mais humilde que onde moro. Eu só observava um garotinho na janela, mal sabia falar, mas já xingava perfeitamente.

E sobre a hereditária burrice, minha mãe já tentou me passar que homossexuais são perigosos, que eu jamais poderia gostar de coisas de meninas e que só podia ser o que os seus malditos padrões diziam que era pra mim ser.

Graças à essa "correção" minha vida é extremamente chata, morta e solitária.

Unknown disse...

Sinto muito por ter passado por essas situaçãoes e pela 'correção' dada por sua mãe. Mas só o fato de você ter essa consciência já é muito! A partir do momento que percebemos que isso não é certo, ou melhor, que não existe certo, temos a possibilidade de podermos mudar e construir nosso próprio certo, nossa própria forma de ver as coisas e mudarmos o trajeto da nossa vida (construído pelas pessoas a nossa volta).

É como diz o subtítulo do meu blog, que eu gosto tanto, "a vida é aquilo que você faz, daquilo que te fizeram". Ou seja, há inúmeras situações as quais somos obrigados a viver e lidar com, porém o que fazemos delas é responsabilidade nossa. Por exemplo, se alguém te da um tapa, você nunca escolheu levar esse tapa, mas você pode escolher bater de volta ou sentar em seu canto e chorar.

Boa sorte em suas escolhas e muita, muita força, porque eu sei bem o quão difícil é transformar tudo de ruim que vivemos em algo minimamente enriquecedor. E muito obrigada pela visita. Volte sempre que quiser.

Abraços,
Sah.