"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Um pouco tarde demais



Você está gorda, gorda demais. Você gosta de ser feia assim? Se você continuar gorda desse jeito nenhum moço vai querer casar com você. Você vai ficar sozinha para sempre que nem a fulana, é isso que você quer? Por que você não emagrece? Você está ridícula. Nossa! Que gorda. Gorda, gorda, gorda, gorda. Fecho os olhos tentando segurar as lágrimas, posso ouvir meu irmão rindo de mim, me perseguindo pela casa me chamando de gorda, posso ouvir as críticas de minha avó, posso ver seu olhar de desprezo, posso sentir as outras crianças puxando meu cabelo, me empurrando, rindo de mim. Deus, por que você me fez tão feia? Por que eu sou assim? Por que as coisas precisam ser assim? Fecho os olhos com força e tampo meus ouvidos tentando abafar as risadas ecoando em minha mente. Deus, eu me odeio tanto, tanto. Eu só queria morrer à vezes, fazer a dor parar. Deus, por que eu existo? Qual o objetivo dessa tortura toda? Eu me odeio tanto, tanto, tanto. Meu peito dói, minhas mãos tremem e eu sinto que meu mundo está despedaçando de novo, por favor, alguém me ajude, por favor, por favor, por favor. Tento não voltar para o passado mas é inútil, estou constantemente voltando aos meus 5 anos, 8, 10, 15 anos.

Pisco meus olhos com força tentando me concentrar na partitura em minha frente enquanto meus dedos erram pelo piano. Sinto o olhar acusador e exigente de minha avó em minhas costas. Tenho uns 13 anos nessa lembrança se não me engano, e uma grande dificuldade para me concentrar naquilo diante de meus olhos. Minha professora sempre sorri para mim e fala o quão inteligente eu sou, diz que eu tenho talento, que aprendo muito rápido... Mas ali, diante daqueles olhos, eu pareço uma retardada tentando tocar. Não consigo, não consigo, e a cada erro, menos eu consigo me concentrar e mais eu acabo errando. Minha avó suspira decepcionada interrompendo minha música, se é que aquilo podia se chamar música. Ela diz que eu sou horrível, que eu nunca vou ser como minha mãe, que eu nunca vou conseguir me tornar uma organista (como chamamos a pessoa que toca o órgão na minha igreja). Até essa idade eu sonhava em ser organista, depois desse dia não mais. Depois desse dia, tocar piano na presença de qualquer pessoa se tornou cada vez mais difícil. Minhas mãos não obedeciam mais meus comandos, não acompanhavam meus olhos, não seguiam a melodia. Eu nunca vou ser tão boa quanto minha mãe, eu nunca vou aprender a tocar direito, eu nunca vou ser boa o bastante. Soco as teclas do piano com raiva e frustração, nada o que eu faço é bom o bastante, nada é bom o bastante. Eu só queria que alguém se orgulhasse de mim, se orgulhasse do que eu faço.

Tenho 12, corro pelo apartamento tentando chegar a meu quarto antes que meu irmão me alcance, preciso me trancar ali dentro, preciso me proteger, ele vai me machucar, ele vai me machucar. Entro em meu quarto e tento fechar a porta atrás de mim, mas ele consegue impedir que eu a tranque colocando seu pé entre o vão. Ele ri, aquele riso maníaco ao ver meu desespero enquanto eu tento empurrar seu pé para fora do meu cubículo, estou tão assustada, tão assustada. Ele me xinga de gorda e feia, diz coisas horríveis. Se ele entrar eu sei que vai me encurralar e me bater só para me ver encolhida em um canto, só para me ver chorar. Por fim, depois de muito esforço, consigo empurrar seu pé e passar a chave rapidamente em minha porta. Meu irmão começa a socá-la, rindo mais alto ainda. Seu riso até hoje ecoa aqui dentro. O que eu fiz de errado para merecer isso? O que eu fiz de errado?

Tenho entre 8 e 10 anos de idade, as crianças mais velhas me cercam e me machucam, fazem coisas que não deveriam fazer. Quando finalmente me libertam eu saio correndo e chorando, por fim, percebendo que havia algo de errado em tudo o que eu passava, que aquilo não tinha como ser certo, tinha? Pela primeira vez chego chorando desesperadamente em casa. Minha mãe solta um simples "ignore" quando digo que as outras crianças riem de mim. Nunca mais contei nada que sofri para ela. Ignorar? Ignorar? Você ignora um joelho ralado, não uma alma sob tortura diariamente.

Me olho no espelho. Meu corpo é feio, meu rosto é feio, meus olhos fundos e cansados, em meus braços e pernas centenas de cicatrizes. Eu fui sozinha por muito tempo, ninguém nunca levou a sério meu sofrimento até que eu chegasse em meu limite, ninguém se preocupou comigo, com o que eu pudesse estar passando por, ninguém enxugou minhas lágrimas, ninguém me explicou que o que eu passava não era normal e que eu tinha o direito sim de ser feliz e respeitada como todo mundo, ninguém passou a mão em minha cabeça ou me abraçou quando eu mais precisei, ninguém ouviu o que eu tinha a dizer, ninguém imaginou que a dor que eu tinha aqui dentro era tão grande e profunda que se tornou incurável, irreversível, fatal. Em minha mente as pessoas continuam rindo de mim, continua me empurrando, me diminuindo, me abusando. É uma tortura constante. Onde estavam as pessoas que deveriam me proteger? As pessoas que deveriam estender a mão em minha direção e me ajudar a levantar? Onde elas estavam?

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