"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

domingo, 8 de julho de 2012

Uma história de violência



Você nasce, não escolhe onde, quando ou em qual família. Durante os primeiros anos da sua vida você não escolhe nada, você não pode fazer nada a respeito de coisa alguma. Um ano, dois anos, três anos. A vida é pequena e simples, você sorri para todo mundo, imita tudo o que vê e faz tudo em busca de amor e carinho, seja ele como for. Você vai crescendo e o mundo a sua volta se amplia. Você vê seus coleguinhas na escola e sente um certo estranhamento, por algum motivo, que você não sabe explicar ainda, você se acha diferente deles, você não se encaixa, você não consegue ser como eles, não consegue se enturmar devidamente. Todos eles falam de mais, brincam entre si com uma naturalidade que você não consegue entender, fazem amizade fácil, aprendem como devem aprender, alguns mais rápido outros um pouco mais devagar, mas aprendem, se interessam por tudo, enfim, são crianças. Você não. Você é quieta, tem dificuldade para falar, para fazer amizade, para entender o mundo a sua volta, e sente algo terrivelmente errado dentro de você. Você é fechada por natureza, não se sente confortável em lugar algum, é quieta e tímida e quanto mais cresce e mais percebe que não consegue se encaixar, mais se isola.

As pessoas passam a implicar com você. Por que você é tão estranha? Por que é tão feia? Por que é tão gorda? Por que seu cabelo é assim? Por que você não fala? Por que está chorando? Hein? Hein? Hein? Eles te cercam e riem de você, apontam em sua direção, te empurram, puxam seu cabelo, te perseguem. E você não consegue entender porquê. O sentimento de estranhamento dentro de você cresce cada vez mais. Você olha distante para as outras pessoas e se imagina vivendo outra vida, cria fantasias em sua mente, mentiras, sonhos, se esconde atrás de livros e histórias fantasiosas de mundos onde os desencaixados viram heróis e finais felizes existem. Mentiras, mentiras e mais mentiras. A perseguição se torna pior, atinge outro nível. Violência. Violência onde quer que você vá. Em casa, no prédio, na escola, não importa. Você está sendo assassinada a cada dia e ninguém parece perceber ou se importar. Você corre e corre, de tudo e de todos, você se assusta com o mínimo movimento, com o mais inocente toque, com a palavra mais macia. Dói. É difícil para você perceber onde e porquê, mas dói. Você não entende. Tem algo de errado com você, é a única certeza que cresce a cada dia. Tem algo de errado.

Você é quase uma adolescente agora. Se olha no espelho. Sente repulsa por si mesma, se sente suja. Tem algo errado. Não tem? Passa a mão pelo corpo, desconfortável. De repente é tomada por uma raiva enorme de si mesma, as lágrimas escorrem como nunca. Tem algo errado, tem algo errado, tem algo errado. Soca a própria cabeça sem saber porquê, atira tudo ao seu alcance no chão, chuta os móveis do seu quarto e chora. Chora como nunca, sentindo um buraco enorme se abrindo em seu peito. Apaga a luz e se encolhe em um canto. Por favor me deixem em paz, por favor me deixem em paz, por favor me deixem em paz, por favor, por favor, por favor. Você não entende. Vive se escondendo, atrás de sorrisos falsos, mentiras e máscaras e nem sabe direito porquê. Mas isso é necessário, é necessário para se suportar a vida. Ninguém pode saber, ninguém pode saber, nem mesmo você mesma. Você se torna quase uma sombra do que um dia poderia ter sido. É passiva, tímida, fechada, antissocial, indefesa, autodestrutiva, facilmente influenciável. Um desastre. Um desastre ambulante.

Você é uma adulta agora. As lembranças de uma infância e adolescência que você não quer admitir te atormentam diariamente. Por que eu nunca pedi ajuda? Tantos anos de silêncio e sofrimento. Tantos anos perdidos em um inferno constante. Aquele dia, em que eu caí na varanda do meu apartamento e encostei minha cabeça em minhas mãos, derrotada, chorando como um bebê. Quantos anos eu tinha? 11? 10? Exausta, física e psicologicamente. Minha mãe me perguntou porque eu chorava. Não conseguia me explicar. Como poderia? Ela me falou sobre Deus, que ele me ajudaria. E eu fui deixada ali no chão, exatamente do mesmo jeito que estava antes. Deus... Deus? Deus fica no céu, não no inferno. Eu vivo no inferno, é claro que ele nunca vai descer até aqui para me buscar, não sei porque eu esperei tanto. Ninguém me ajudou, nem mesmo eu mesma. Eu não escolhi onde nasci, nem quando nem em qual família. Mas creio que em algum momento tenha escolhido o silêncio, pensando que não existisse a possibilidade de se falar. Não, não. Não escolhi nada. Eu só me observei de bem longe, sem me mexer, sem reação nenhuma, enquanto o mundo destruía tudo o que eu poderia ser e das cinzas nascia algo irreconhecível. O que eu sou agora.

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