"A vida é aquilo que você faz daquilo que te fizeram"

sexta-feira, 30 de março de 2012

Gritos e silêncio mudo



O garoto tocava sua flauta de madeira com os olhos fechados, tentando se concentrar na música incerta que saia dela e não nos gritos que vinha da porta atrás de si. Sentiu seu gato se enroscando aos seus pés, ronronando confortavelmente, como se não existisse problema algum no mundo. Caio assoprou com mais força, desejando ter o folego necessário para tocar alto o suficiente para nunca mais conseguir ouvir grito nenhum, saído de pessoa alguma. Não deu certo. O máximo que conseguiu foi assustar o gato com o barulho fino e desafinado que saiu de seu instrumento. Ele queria saber tocar, saber tocar de verdade, não só brincar como ele estava fazendo. Adorava a música, sempre adorou. Não sabia explicar porque, ele simplesmente sentia que precisava entrar em contato com ela, deixar com que ela lhe indicasse o caminho, algo do tipo. A música falava, sentia, traduzia tudo. Caio não falava, havia nascido sem cordas vocais, mas a música falava, o tempo todo. O garoto assoprou mais uma vez sua flauta se animando, ele não precisava de voz para ser ouvido, certo?

Sentiu um pé empurrando suas costas. Olhou para atrás há tempo de ver sua irmã mais velha passando por ele e batendo a porta atrás de si com toda a força que tinha. "Escroto de merda..." ele ouviu ela dizendo baixinho. "E você? Tá olhando o que?" disse ela se virando para ele, "Faz mais barulho com essa flauta do que todas as crianças do bairro juntas, e isso que você nem fala, imagina se falasse.". Caio deu de ombros e, enquanto observava a irmã se afastar rua afora, tentou não prestar atenção no quão curta era a saia que ela usava, ou no jeito como ela rebolava e andava ansiosamente nas pontas dos pés, atenta a qualquer homem que surgisse em seu campo de visão. Ela tinha 13 anos só e ele tinha 10. Caio não conseguia se lembrar da irmã sem que ela já não apresentasse um comportamento de adulto. O garoto estremeceu sem saber porque, seu gato miava ao seu lado exigindo atenção, o que ele ignorou como se não só fosse mudo, mas surdo também. As vezes desejava ser surdo, ao menos não ouviria grito nenhum, mas também não poderia ouvir a música... O que seria péssimo. Bom, tudo tem seu lado bom e seu lado ruim.

As pessoas adoram ser ouvidas, as pessoas precisam ser ouvidas. Caio nasceu para ouvir, aparentemente. Caio odeia ouvir, Caio quer cantar, quer ver música saindo pela sua boca, ele está cansado de ouvir tantas palavras inúteis, tantos gritos, ele espera pacientemente o dia em que vai poder gritar, o dia em que será a sua vez de desperdiçar quantas palavras quiser, na cara de quem bem entender. "Caio!" O garoto suspirou, se virou e entrou na casa, segurando por alguns instantes os olhos fechados.  Quem sabe ser cego também, não ter que ver nada daquilo nunca mais, não ter quer viver nada daquilo nunca mais. Ele só queria poder gritar. Quem sabe morrer.

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